O espaço da criatividade na re-construção de identidades

                                     Por Dolores Maria Pena Solléro e Bianca Pena Solléro

INTRODUÇÃO
          Ao se considerar o mundo neste século, cuja estréia foi marcada pela tragédia em 11 de setembro, em que a violência protagoniza no palco sócio-político e em que, a despeito da globalização, a humanidade apresenta-se dividida, pressupõe-se a necessidade urgente de se reconhecer, validar e estimular o potencial criativo do indivíduo, como recurso fundamental para sua sobrevivência.
          O mundo visto como um conjunto organizado de relações significativas só pode ser compreendido se considerarmos estas relações, pois, indivíduo e mundo constroem-se numa dialética contínua, num processo de co-construção. O indivíduo constrói sua identidade, cria e recria-se dinamicamente, na relação com o outro, com o mundo e através do seu potencial criativo.
          O “como estar no mundo” decorre da interdependência, influência e confluência de vários fatores internos e externos.
          Pretende-se aqui evidenciar a importância da criatividade no processo de reconstrução de identidades, vivenciado por pacientes psiquiátricos em tratamento num serviço ambulatorial de saúde mental. Para tal utilizou-se, especialmente, técnicas de expressão artística em oficinas de criatividade e como critérios de avaliação deste processo considerou-se a evolução intra e interpsíquica e a reintegração psicossocial, analogamente ao desenvolvimento do potencial criativo destes mesmos indivíduos. Alguns destes pacientes apresentavam na sua história clínica, antes do tratamento, a intercorrência de surtos psicóticos e internações psiquiátricas. Todos os pacientes são atendidos também em grupos de psicoterapia psicodramática, de orientação psicossocial e em consultas psiquiátricas individuais. Além da oficina de criatividade participam de oficinas físico-recreativa, de dança e de atividades lúdico-cognitivas (jogos estruturados e não estruturados).
          O estudo subjacente à oficina de criatividade foi realizado por uma psicóloga psicodramatista e uma artista, tendo como objetivo complementar, confirmar a importância da criatividade também na consolidação de um novo paradigma: o da Transdisciplinaridade.

DESENVOLVIMENTO
          A Oficina de Criatividade, como parte integrante do serviço ambulatorial de saúde mental, foi criada com o simples propósito de ocupar os pacientes no tempo ocioso entre os grupos psicoterapêuticos e as consultas psiquiátricas. Eram oferecidos materiais como lápis de cor, giz de cera e papel para desenhos livres e também, desenhos impressos para serem coloridos. Ocupando-se com interesse marcante, os participantes tornaram evidente a importância da expressão artística no contexto terapêutico. Confirmávamos, basicamente, que através dela as pessoas podem libertar de suas tensões e sentirem-se melhor.
          Buscando melhor fundamentar a proposta desta oficina de criatividade, nasceu a idéia da interdisciplinaridade: psicodrama e ensino de Arte, que originou este relato.
          Jacob Levy Moreno, criador do psicodrama, estabelece como pilares da teoria socionômica, a espontaneidade-criatividade e as considera como fenômenos primários e positivos. “Espontaneidade é uma aptidão plástica de adaptação, mobilidade e flexibilidade do eu”; é  considerada “a resposta nova de um indivíduo ante uma situação nova e a nova resposta a uma situação velha”; é o fator “e”(Moreno,1974). A criatividade é a alma de todos os seres vivos, os quais têm de ser criativos para sobreviverem. Portanto, o fator criatividade é geral no universo e pertence à categoria da substância primeira; para ser efetiva precisa de um catalizador: a espontaneidade. Moreno valoriza o ato da criação, “o encontro do artista com alguma coisa”, mais do que a criação já pronta (a obra de arte). A criatividade, portanto não pode ser entendida como um fenômeno essencialmente subjetivo; ela ocorre, “num ato de encontro, e deve ser compreendida como tendo por centro este encontro” (Rollo May,1982).
          Neste sentido é importante considerarmos que as expressões artísticas da arte contemporânea se dão nesta mesma maneira, não valorizando mais o temático ou a resolução formal da obra de arte, mas procurando serem auto-referenciáveis (discutindo “o fazer” e não apenas “o representar”).
          O momento da criação, ainda para Moreno, é considerado o momento da centelha divina; na expansão máxima do ato espontâneo considera alcançar-se o limite entre o humano e o divino. Enfatiza a essência inovadora da vida humana, mais do que a repetitiva. Ao referir-se às conservas culturais reconhece-as como produto da criatividade. A obra de arte conserva em si o momento da criação. Assim sendo, considera que as próprias criações do ser humano coarctariam sua espontaneidade e entende que ao longo da vida em sociedade, as normas e regras vão suplantando a espontaneidade e restringindo a capacidade de criação.
          A liberação da espontaneidade-criatividade é que possibilitará a evolução psíquica dos indivíduos. Em contrapartida, a espontaneidade sem criatividade corresponde à patologia da espontaneidade, relativa às psicoses. Referindo-nos a nossa clientela faz-se prioridade, no processo de re-construção de identidades, o desenvolvimento e treinamento de respostas adequadas, inovadoras e criativas destes indivíduos.
          A fluência da espontaneidade-criatividade, compreendida como indicador de saúde mental, faz-se objetivo e desafio. Por esta clientela o mundo é percebido, via de regra, como hostil e ameaçador. Portanto, no processo de reintegração psicossocial inclui-se o fato de estes indivíduos lidarem com o medo e a dor emocional da estigmatização.
          Aproximando psicodrama e ensino de arte passamos a considerar especialmente, que a arte e a personalidade do criador se contracenam, e que também através da sua expressão artística o indivíduo pode ressignificar e interpretar as coisas do mundo, uma vez que esta consiste no diálogo estabelecido entre o indivíduo e o mundo que o cerca. O ato de criar intermedia esta relação, por mais precária e difícil que seja, facilitando-a. A dramatização, o treinamento e a representação de papéis, o espelho, e outras técnicas psicodramáticas são desenvolvidas (nas sessões psicodramáticas) numa interface com a expressão artística (nas oficinas de criatividade) e se complementam interdinamicamente.    
           Podemos dizer que a psicoterapia psicodramática ao priorizar a ação e a oficina de criatividade a expressão, paralelamente, oportunizam e favorecem aos participantes a maior fluência da espontaneidade-criatividade de forma facilmente observada. Em se tratando dos pacientes psicóticos a contribuição da oficina é ainda mais perceptível, pois intensifica-se o desenvolvimento da criatividade.
           Atualmente a oficina de criatividade é oferecida duas vezes por semana a cada um dos grupos. As atividades e técnicas a serem desenvolvidas são planejadas sem que se perca de vista o objetivo essencial de garantir a liberdade de expressão e de escolha dos participantes. Segundo Victor Lowenfeld (1977), a cópia fiel de modelos impede o desenvolvimento da “livre expressão criadora”. Respeita-se o fato de que é no ato do fazer e criar que a relação do “artista” com sua produção se torna maior e mais íntima. Esta relação se dá de forma singular e por conseguinte, oportuniza ao criador o próprio recriar-se. Por assim ser, o indivíduo ao longo do seu processo de reintegração psicossocial, ao expressar-se através da sua arte, tem valorizada sua subjetividade e, conseqüentemente, aumenta a liberdade da sua produção artística. Nesta perspectiva, subjetividade e criatividade se interdependem.
           O processo de “re-construção” de identidade é gradual e progressivo considerando que cada um dos pacientes encontra-se num nível de evolução psíquica e que, de forma independente, dedica-se à expressão artística e desenvolve sua criatividade.
          Como referencial para a análise da evolução psíquica dos pacientes utilizamos o esquema de desenvolvimento da Matriz de Identidade que consiste nas fases de indiferenciação, simbiose, reconhecimento do Eu, reconhecimento do Tu, relação em corredor, pré-inversão de papéis, triangulação, circularização e inversão de papéis, seguindo-se ao encontro e à revitalização de identidades; consideramos os níveis transferenciais a partir do diagnóstico dos núcleos de psicotização. (Fonseca,1980).     
          As sessões de psicodrama oportunizam aos pacientes a revisão dos seus vínculos a partir da utilização das técnicas psicodramáticas; “refazendo” a matriz de suas identidades criativamente reconstroem-se.
          As diferentes formas de representação artística são desenvolvidas segundo as visões de mundo do criador e suas necessidades psicológicas. Desde a gestualidade e expressividade de um Pollock (1912-1956), ao conceito e rigor formal de um Cildo Meireles (1948) ou um Mondrian (1872 – 1944), evidencia-se a complexidade das inúmeras relações geradas entre as singularidades de cada artista e as diversas partes envolvidas no processo de criação.
           A técnica do desenho livre à qual, a princípio, ofereciam alguma resistência foi progressivamente aceita e desenvolvida. Consideramos os afetos e sentimentos comunicados a partir de simples borrões e das imagens deles originadas. “O símbolo configurado em materialidade leva à compreensão, transformação, estruturação e expansão de toda a personalidade do indivíduo que cria”, considera Ângela Philippini (1994).
           A expressão artística se revela como expressão de identidades na medida que reconhecemos que esta sempre comunica algo de seu criador, seja de caráter político, social ou puramente emocional e individual.
           A rasgagem e colagem de papéis e de revistas, e de diferentes espessuras, as modelagens e a diversificação do material utilizado, foram imprimindo nas produções artísticas as características inerentes do seu criador. O uso da purpurina, do brilho e das cores, vão permitindo igualmente, a identificação de quem as criou desconsiderando-se, aqui, o preconceito estético. Atualmente identificam as próprias produções e por vezes reconhecem-se capazes de identificar as dos colegas; emitem opiniões que, como num breve exercício de análise crítica, validam a auto-estima e ampliam a socialização, manifestando apreço e consideração próprios e pelo outro. Através de simples comentários, remetendo-se às lembranças, vivências e sentimentos, refletem um olhar mais sensível e intuitivo. A arte portanto, não representa simplesmente a realidade, mas é a realidade percebida de um outro ponto de vista.  Segundo Fayga Ostrower (1994), “a percepção (...) origina-se numa misteriosa faculdade de nossa sensibilidade – a intuição(...). A intuição vem a ser uma característica essencialmente humana, constituindo uma das vias cognitivas mais importantes do homem. Sobretudo sua função sempre criativa”.
          Confeccionando cenários, fantoches, enfeites, máscaras, colares, instrumentos musicais com sucata, foram ampliando sua linguagem, socializando-se e coletivizando a produção artística sob o viés da multiculturalidade.
          O nível de envolvimento de todos os participantes da oficina traduz-se num clima amistoso e de solidariedade. Reconhecem-se mais criativos e motivados à produção. 
          Acontecem exposições artísticas das quais participam como expositores e organizadores, por vezes até curadores. A visitação às exposições oportuniza a integração dos participantes e visitantes; interagem, desmistificam-se e portanto, incluem-se socialmente. A partir dos diferentes contextos e momentos de exposição artística percebe-se a gradual mudança nestas relações e por conseguinte, a diminuição do preconceito e uma convivência mais tranqüila e saudável.  
          Observamos que os participantes vão sendo, cada vez mais, capazes de, criativamente, melhor resolverem situações-problemas do cotidiano.
          No contexto familiar dialogam, valorizando as linguagens verbal e corporal como recursos interrelacionais importantes. Os familiares que também participam das oficinas, no grupo de cuidadores, facilitam todo o processo e reconhecem o desenvolvimento da própria criatividade e a sua função facilitadora nas relações familiares e sociais. 
          “A arte (...) só cumpre a sua verdadeira missão quando o contágio em virtude do qual as consciências se comunicam, leva os indivíduos, habitualmente isolados, a se reconhecerem entre si como membros da humanidade. Nem todos os sentimentos e pensamentos são compatíveis com essa missão ética e espiritual de fortalecer a união entre os homens e contribuir para a fraternidade universal." (Nunes, 2003)
          Com este trabalho acreditamos ter contribuído para mudanças significativas nas relações homem-mundo e evidenciamos alguns dos mais significativos depoimentos dos participantes da oficina de criatividade:
“A oficina de criatividade é muito importante para mim, me tranqüiliza, é muito empolgante.”
“É muito gratificante fazer o que agente achava que não conseguia”
“...estou sendo elogiada no serviço e em casa.”
“Estou voltando ao mundo.”
“Não sou melhor nem pior, apenas a cada dia aprendo um pouco.”
“...a gente esquece que tem que pegar o ônibus.”
“...me sinto tranqüila e mais segura.”
“A oficina abre a minha mente e me faz enfrentar tudo de ruim da minha vida.”
“Às vezes não consigo mas sei que vou tentar.”
“Tudo se torna mais fácil e agente sente mais leveza.”
“Agora penso antes, sei que posso criar uma saída.”

CONCLUSÕES
          Ao abordarmos a criatividade nas perspectivas psicodramática e do ensino da arte podemos concluir nosso relato referendando e confirmando o espaço da criatividade no processo de re-construção de identidades.
          Numa perspectiva intrapsíquica observamos a evolução dos pacientes na medida que passaram a freqüentar o serviço de saúde mental de forma mais autônoma, espontânea e alegre. São assíduos e dedicam-se, sem manifestar oposição, às atividades propostas. Priorizam a conclusão da sua produção artística demonstrando envolvimento e apreço pela sua arte. Demoram-se ao falar do que produziram.   Alguns que não se deixavam fotografar, hoje o permitem sem restrições: aumentaram a auto-estima. Podemos dizer que aumentaram a capacidade de jogar papéis.
          Na perspectiva interrelacional sobressaem os comportamentos e atitudes adquiridos em relação à maior participação e organização no grupo, tanto nas oficinas quanto nas atividades entendidas como externas: passeios, caminhadas ecológicas, apresentação em anfiteatro e exposições artísticas. Observa-se maior desinibição nos grupos e entusiasmo nas tarefas grupais e atividades sociais. Há predominância de uma convivência cooperativa, solidária e alegre permitindo-nos concluir sobre a melhora da comunicação em geral.
          Num momento em que nos ocupamos com a sustentabilidade dos recursos naturais do nosso planeta incluímos como igualmente inadiável a sutentabilidade da diversidade humana. Neste sentido, a despeito das significativas dificuldades engendradas pela representação social dos transtornos mentais entre os próprios familiares e da comunidade, concluímos que a proposta da oficina de criatividade confirmou-se como estratégia de ação eficiente para a inclusão social. Observou-se a  presença de um número cada vez maior de familiares e “amigos” dos pacientes nos eventos comemorativos e artísticos organizados por estes, tais como: Natal, festa junina, carnaval, exposições, apresentação de teatros, teatros de fantoches, danças e lanches coletivos.
          Ao considerarmos “Alfred Adler que, ao referir-se à sua teoria compensadora da criatividade, diz que os homens produzem a arte, a ciência e os outros aspectos da cultura para compensar as suas imperfeições” (MAY, 1982), confirmamos que ao produzirem suas artes os participantes da Oficina de Criatividade reorganizam-se sócio-psiquicamente reconhecendo-se sujeitos e validando suas identidades no mundo.
          A expressão artística como proposta da Oficina de Criatividade oportunizou o desenvolvimento da criatividade-espontaneidade tornando-os cônscios dos seus próprios potencial, talento e recurso.
          Reconhecendo-se criativo o indivíduo resgata a integridade do Eu, sua dimensão relacional, seu pertencimento e faz-se espontâneo.

Referências bibliográficas:

  • LOWENFELD, Viktor. A criança e sua arte (um guia para os pais). 2ª edição. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1977. 228p
  • MAY, Rollo. A coragem de criar. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. 143p.
  • NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. 2ª edição. São Paulo: Ática, 1989. 128p.
  • PHILIPPINI, Ângela. Arteterapia, um caminho. In: Imagens da Transformação. Luzazul Editorial, 1994. pp. 04-07
  • OSTROWER, Fayga. Loucura e criatividade artística. In: Imagens da Transformação. Luzazul Editorial, 1994. pp. 22-26
  • FONSECA, José. Psicodrama da Loucura: correlações entre Buber e Moreno. São Paulo:Agora,1980.
  • MASSARO, Geraldo. Loucura: uma proposta de ação.São Paulo:Agora,1994.

Curso: Introdução à abordagem Sócio-Psicodramática

O atendimento terapêutico de grupos tem sido cada vez mais indicado, uma vez que cada um dos integrantes expressa e apreende novas possibilidades de expressão e comunicação, em menor tempo. O exercício da convivência oportuniza novos significados para antigas situações e agiliza o processo de desenvolvimento pessoal e interpessoal. Empresas, escolas e outras instituições dinamizam o processo de humanização e agilizam seus projetos nas áreas da saúde e sócio organizacional demandando o trabalho com grupos. A capacitação de profissionais para o trabalho com grupos é necessária, pois exige-se conhecimento e técnica.
A proposição deste curso vem atender a demanda atual com o objetivo de implementar esta modalidade terapêutica a favor de todos envolviods no processo.

PROGRAMA DO CURSO

  • História da Socionomia: Jacob Levy Moreno
  • Filosofia do Momento
  • Espontaneidade-Criatividade
  • Teoria dos papéis e Clausters
  • Teoria dos Vínculos
  • Átomo Social
  • Esquema de Desenvolvimento humano - Matriz de Identidade
  • Técnicas e fundamentos
  • Psicodrama, Sociometria, Sociodrama e Jogos PsiScodramáticos
METODOLOGIA Sócio Psicodramática
CARGA HORÁRIA: 36 HORAS - Módulos Mensais
FACILITADORA: Dolores Maria Pena Solléro

Espetáculos da Trupe Encontrarte de Playback Theatre no ano de 2010

Em dezembro, a Trupe EncontrArte de Playback Theatre realizou o último espetáculo do ano no seu lócus. A "casa cheia" permitiu a re-edição de muitas estórias. Para 2011 a Trupe já conta com um público assíduo e muito interessante.

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